sábado, 27 de dezembro de 2014

"World Music"


Sou tão interessante quanto qualquer outro sujeito do meu tempo
Um pouco mais, talvez, porque raramente prestava atenção
Nos pequenos cinemas do centro da cidade
Empalideci, por anos
As costas supliciadas, clarão cambaleando, concluía
Errado –, o sol lá fora
Tira um avermelhado de folhas verdes, sabemos e percebemos
Qualquer coisa que as luzes logo vêm
Desmentir –, pôr sob luz diversa
Enfim, particularidades que ignoro
(No centro de particularidades que ignoro)
Porém, se a certos fenômenos tornei-me de fato insuscetível
Outros parecem interessar-me cada vez mais
Cruzo os braços no rebordo, é terrivelmente pitoresco
Achar-se assim num parque gramado
Fazendo planos, procurando uma estação de world music  

sábado, 20 de dezembro de 2014

Dois Poemas em Dezembro

"Façamos votos"

"Só um desejo de nitidez ampara o mundo..."
- Mário de Andrade, do poema "Momento (Abril de 1937)"

Então não estamos exaustos.
As bocas limitam com o mundo
seus embrulhos prateados –, “paga

uma miséria e a burocracia
é interminável. Que mais queriam
neste pé do ano?”. Contração da primavera

até dar com os punhos cerrados
sobre a mesa da cozinha. Solstício.
Os jornais.

Então somos homens ao sol,
não somos?, homens no princípio
de certo peso, desejosos de –,

Coisas caminhadas às claras,
tão distantes de adivinhas quanto
estamos de uma pátria

mãe: Ao dar com os punhos cerrados
sobre a mesa da cozinha, desengasta a palavra
“solstício” de uma folha de jornal

***

Para o Murilo

Certos muros da cidadezinha reflorida
colocarão sua juventude como um problema
incontornável –, 
..........................algo que devo ver.
É pena que isto só me ocorra agora,
meses depois, na fila de uma casa lotérica,
a baita metrópole a meio.

Evocação, coisa fortíssima donde

construo os pés. Por desgraça,
nenhum outro poema me estendia agora o isqueiro.
Não há quem compre sapatos novos,
quem jante com o Dirk Bogarde.
O poema, então, é pagar esta multa,
voltar para casa o quanto antes,
ver se a mãe já conseguiu comer alguma coisa

sábado, 13 de dezembro de 2014

Convite




Passeio um Pouco Grave


Caminho caminho só
a contextura de um museu

acontece vez por outra
pisar numa coruja –, e doer –,
e

maravilhar-se
ante tudo que é vivo,

ante o insepulto.

Caminhando caminhando só
a qualidade da própria atenção

de poucas 
palavras para precisar 
a luz sobre um gramado

a luz repastada no mundo
caminho
caminho só, quem sabe

um dia meus braços não
perdem algo
desta estúpida formalidade

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Insignificância


Vá trabalhar, anjo.
Nenhuma paixão é realmente capaz de substituir o álcool
afora, talvez, o dinheiro.
Foi assim que construí meu império.
Probidade.
De repente ficou tão humilde que mal consegue deixar o terraço
quando
a chuva quebra seus primeiros frascos de amônia na calçada,
os anjos infiltrados na mureta
dão um dó, diz
que emborcou dois imóveis no Flamengo em menos de dez anos,
ali perto da praia.
Repete.
Repete para você ver
que não me faltam experiências.
Vê-se logo que é um sujeito incapaz de se sacrificar por coisa alguma.
Vê-se logo, um aventureiro, às vezes
tomar o caminho mais longo, aquele
que passa pelos botecos que assombrávamos à época.
Ponho a cabeça na chuva,
já não reconheço ninguém.
Galgando ladeiras sempre com grande tormento para todos.
Pois bem, onde já se viu um wunderkind de trinta anos de idade?
A última crise de fé espocou nos idos da graduação.
Em dado momento vi-me forçado a abandonar a cidade, tão exausto
andava de parabenizar os meus.
Eu sou o filho ônibus do Kapital.
Às vezes me pergunto como certamente você

você
você
você

e este homem espigado atrás de mim –,
quem vem lá? A visita inesperada de um moinho.
A Perseverança.
Tão fora de esquadro com as dimensões desse sótão.
Um homem bem-nascido pode se dar ao desfrute de ser paciente.
Quanto a mim, sigo em minhas devoções. Acho que nunca encontrarei
uma saída.
O cansaço saiu-lhe aos braços, a voz
saía-lhe uma fazenda branca.
A cara toda pegada de sólidos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Surdinado


manca ancora il silenzio nella mia vita.”
- Eugenio Montale


Inútil dizer que digo

o que digo e a fala espirala.

Já é tarde motim
afirmar,

colher
um formigamento debaixo
do piso,
encerar o círculo
mágico, ao santo de barro

empurrá-lo um lanço
de escadas,

tão tarde,
tão tarde

motim,

Vir fantasma,
metrônomo,
escapado
de muitas vozes,

mas isto
não é
a diferença
(o que eu procurava)

O que eu
procurava?

O direito de estar
entre as coisas

pleno entendimento
daquilo que me dão
daquilo que me negam

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Nu Sobre Uma Duna


Subiria de volta à duna,
veria nela a respiração que toda a gente vê?
Pisava-a?
Despia os shorts
primeiro
a retórica da nudez
mudava-se enfim
diante dos meus olhos
numa imagem
a imagem de uma duna
encimando-a
um homem nu
é nesta competência que você
ocorre
aos homens esgotados
é neste
movediço que
o engole
a fantasia de outro
é aqui
diante dos meus olhos
você se torna imaginário
você some

domingo, 2 de novembro de 2014

Fantasia Acerca da Dignidade dos Homens, I


Que fazia em meu lugar um homem digno, um homem de princípios elementais?
Esvaziadas já todas as peças, põe-se a folhear a varanda.
Volta-se ao corretor.
“A vista é muito graciosa, decerto, mas com ela não se pode limpar o rabo”.
Eis aí um homem sensato.
Sensato, como se vê, jovial.
(Disse uma verdade, o firmamento não veio abaixo).
Agora partem os dois em busca de coisa mais compreensível.
A mim, deixam-me quieto.
Que mais posso pedir?
Em sonhos, no entanto, alteio-me ao centro da sala.
Eis aí um homem sensato, de voz ancorada, voz que fundeia o navio.
Olhos fitos em cada um deles.
Que faz este leme no canto da sala? O que quer dizer, que querem dizer com isso?
Sou um homem.
Destes homens que dizem coisas como –, “não saio daqui sem respostas”.
Um homem digno, enfim.
Este homem, que fazia este homem para tirar da grande revelação a grande revelação?
É de supor que já se tenha defrontado em algum momento com o problema do teatro.
O problema da representação.
O problema da afirmação decisiva.
Como terá resolvido o problema da afirmação decisiva?
Como parece tranquilo, afinal.
Debruçado à varanda, traz para dentro dos ossos a impossibilidade, embala-o (dentro dos ossos) o reproche maternal do tempo.
Remediado está.
Remediado está.
Não consigo interromper a costura do fantasma.
Mancheias de sangue no interruptor.
Talvez sejam minhas.
Que sei eu?
Ele é digno como os sonhos, mas ele se move.
Ele se move pela estatuária –, grotesca –, não há como contornar –, apalpa umas corujinhas de louça.
Que fazia das medalhas, este homem, das medalhas?
Cortavam-nos os pés.
Cortávamos os pés nas medalhas, voltando da praia.
Os anos já não comportavam tanta boa vontade.
Tanto “sacrifício”.
E no entanto, aquilo continuava.
Que fazia dos anos, fazia que não dava por eles? Que não tinham peso, gravidade?
Fazia como os homens que levam num frasco a bala que por pouco não os matou?
Que fazia a respeito dos quadros, destes quadros com os galos, por exemplo?
São odiosos, não há quem não o reconheça.
No entanto, pelo que sei, jamais moveu-se uma palha para tirá-los do lugar.
Agrada-me a ideia do leilão, é civilizada (civilizada demais para nós, se querem mesmo saber).
Dói-me, no entanto, que os vestidos dela não conheçam o fogo.
Creio tratar-se de um impasse objetivo.
Nada disto dançará selvagemente?
Nada conhecerá a blasfêmia?
Não conhecerão o fogo
.......................... o leme
...........................as corujas
...........................os galos
...........................os malditos galos?
Vamos lá, responda.
Que fazia em meu lugar um homem digno?
Matava-se.
Ou isto ou sumia no mundo.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Num Campo Orvalhado


A nudez punha óculos, até a nudez
necessitava

uma cadeira, ainda que nua, a nudez
buscava a este papel

as bordas nuas, uma esferográfica

com tinta suficiente para anotar
algum endereço

às pressas, abria gavetas, abria os usos,
...................................            rodeava-se.

Vi como cada objeto tocado
devolvia-o, cada vez mais grave, a este tempo.

(O grito, o montante, a
substituir
por um único disparo da câmera).

domingo, 26 de outubro de 2014

Sob Uma Marquise, 26 de Outubro de 2014


Já não há tempo de explicar aos pósteros
o que foi uma videolocadora
Certos mares, talvez
laborada exalação de sua tristeza
São certos mares, pálidas montanhas
concorrentemente tristes
E também certas ilhas pegadas ao solo apenas pelos nomes
A esta longa elemental tristeza
Opõe-se esta outra
Tão breve e, em última instância, dizível quanto
hálito
que se raja contra uma vidraça
Sob uma marquise,
ao abrigo de chuva repentina,
É claro, uma situação, madrugada
Noto que às minhas costas há uma videolocadora
E ao ler a placa
Últimas semanas, venda de estoque
Quarenteno uma emoção, admito, um tanto burguesa,
ao reparar no piso axadrezado,
através das grades,
ladrilhos, suponho, ladrilhos
pretos, brancos
Sobre um sábado chuvoso
Exíguo
O lugar é exíguo, subitamente inunda
daquele leve pasmo de pessoas que não sabem ao certo o que fazem de seu dia
apinham-se diante da estante de Lançamentos
lamaceiam pegadas
(sobre pegadas) (sobre pegadas)
sobre o piso axadrezado
Haverá tempo ainda
tempo de falar aos pósteros sobre os funcionários
das videolocadoras
sua beleza sem vigor, seu imperioso tédio,
sua juventude – sempre truncada – sempre truncada, ou não?
Já não há tempo,
afinal,
preteridos pelas montanhas,
tornaram-se tão provisórios quanto sempre nos pareceram
Rápido, rápido acaba-se o tempo das explicações, há estas
montanhas
com e sem tempo
E depois de se extinguirem, a lua
sentada nalgum sítio sobre
a marquise, sob a marquise
junta-se a mim um casal que espera a chuva abrandar
Com efeito, a chuva abranda, passados
dez ou quinze minutos
O casal parte,
Provisório, capa mais branca que
cai, recebe-o em sua queda
a montanha, penso
eu
(Eu estou pensando)
O momento não
é tão oportuno quanto sempre nos deram a entender
Pense novamente
Ninguém nos espera –, RÁPIDO –, ninguém espera
a chuva
que a ultrapasse uma banca de cachorro-quente
um ônibus vazio
risco branco
velocíssimo destino centro cai
às minhas costas
uma videolocadora prestes a encerrar suas atividades
Eu penso alguma coisa afinal
Eu penso
Coloquemos diante da história uma pequena pena de videolocadoras
Coloquemos diante da história também esta pequena pena de videolocadoras
Rápido, não há tempo de explicar aos pósteros
(o que são os invólucros do meu tempo? O que é este objeto negro, cassete na clareira?)
Coloquemos também na história
a vertente de uma montanha
coberta de ladrilhos
pretos e brancos


sábado, 25 de outubro de 2014

Imóvel



uma pequena atenção, pequena cotidiana bravata
pequena cotidiana
investida contra tudo que pende, emporcalhado com os anos
pode vir a infeccionar

a solidez exemplar dos homens
que afastam as moscas

este lugar está limpo, este lugar é meu
a poeira que não se ajunte
sobre uma grande e ordeira paixão

os homens que disto forjam princípios
(de mundo), partem do quarto para a possibilidade,
limpos, vão se arejar

diante de uma grande e ordeira paixão,
dentro de uma grande e ordeira paixão

imóvel

sem a mais cotidiana investida


domingo, 28 de setembro de 2014

O Setembro Seguinte



Precipitação de agulhas no cômodo ao lado.
A custo reúnem-se
o céu,
os bibelôs da cidade do Cairo,
uma gabardina estendida para secar, o cheiro a urina na manta
sobre o parapeito da janela – viver –,
circunvalado pela doença.
Cair, eventualmente,
com a tosse marretando, engulho, grossas passadas rumo ao banheiro às três da manhã.
Uma partilha difícil, em todo caso, indecente.
A morte
em tudo, um peso sanatorial –, arca, baú, banco de igreja –,
arca, baú, banco de igreja.
Tudo participa do meu tamanho. As consistências, porém, oscilam.
A tubulação caduca.
Todos sabem que a fiação não aguenta até o ano que vêm.
Todos sabem, tudo
virá abaixo, não será por falta de aviso,
será a coisa mais distante de um poema de que já se teve notícia.
Contra o verde nauseante da pia, amanhece a branca noite dos pulmões.

Um Mau Amigo das Viagens


Bom, nada mais absurdo que meu vulto rondando essas rodoviárias do interior do estado, acorcundado sob a mochila grande demais, pernas penduradas de altos bancos de concreto –, balançando, balançando... Mas isto à primeira vista.

Uma agradável sensação – afetação, como quiserem – de continuidades decorre de estar num lugar e, logo em seguida, noutro. Talvez se trate de uma cidade abandonada às pressas, feita para se abandonar às pressas, de improviso, com firmeza de decisão tão absurda quanto a mochila que agora lhe pesa sobre as costas; talvez se trate de uma cidade que – como insiste em dizer aos amigos que lá foram cavar a vida –, nunca lhe fez favor nenhum, muito pelo contrário

Quem sabe? Partidas bem mais improváveis despencam sobre todos, todos os dias, basta olhar em torno. A você, mau amigo das viagens, a quem o simples ato de se deslocar de um canto a outro de um saguão envidraçado parece, no mais das vezes, inteiramente impossível, outro destino não caberia.

E como se não bastasse, ao longo das estradas percorridas de noite espaçam-se lugares ainda menos definitivos. Como é difícil acreditar que cidades inteiras se abrem por detrás das paradas, dos banheiros das paradas, dos sucessivos espelhos em que meu rosto vai se embaçando –, estes banheiros onde invariavelmente se pensa – isto é possível, não eu, eu me movendo é inteiramente possível.

Cidades Cada Vez Menores (Num Estacionamento)


Nem aqui estaremos a salvo de reencontros –, no estacionamento vazio de um supermercado, de um restaurante, às nove e meia da noite de um dia de semana –, à cata de respostas, cabeça baixa, lugares bem pouco fenícios – corro os olhos pelas linhas brancas ou amarelas que delimitam as vagas – enquanto –, você pesa, segundo a segundo, minha lentidão, ou até menos – a mesma postura desafiadora de sempre, mais orgulhoso, talvez, embora seu rosto tenha mudado completamente, já naquela época o seu rosto parecia mudar completamente de tempos em tempos, parece que os anos não passaram, que os anos não passam, que um torniquete –, parece que os anos passam, parece que os anos entretanto não se deixam formular, o que é infinitamente mais angustiante –, porque é de fato angustiante procurar por respostas simples e cabíveis e encontrar apenas e sempre certo tempo, informulável – agora –, pareço divisar um objeto qualquer sobre o asfalto: enfoco, não é um objeto qualquer: trata-se de um tubo de lubrificante anal espremido até o talo, a poucos metros de nós, ele consome a pergunta –, perceba, em qualquer outra ocasião isso me divertiria até não mais –, em qualquer outra ocasião eu certamente me sentiria tentado a dizer alguma coisa como Cristo Pai, como eu amo essa cidade – isto me falaria, este detalhe, isto me diria então: “certo, rapazes, mãos à obra!” –, mas agora estou atordoado, parece-me que apostamos alto, aponto para o tubo e em tom de pura delação repito está vendo, está vendo?, e assim me ergo não sem algum atrapalho da pergunta que você acaba de fazer, apontando para o tubo espremido de lubrificante anal, dedo inquisidor, SECO, sentencio, impossível continuar vivendo num lugar assim, impossível viver em meio a tantas distrações, entendo agora o meu percurso, ele me parece mais claro do que nunca, será por cidades cada vez menores, cada vez menores, cidades de esquecimento, cidades negativas, cidades onde toda e qualquer possibilidade de reencontro será vetada já de saída, e consequentemente, eventos cada vez mais insignificantes, relações de natureza sempre mais frágil, sempre mais questionável, enormidade de coisas entre as quais perder o seu rosto outra vez, na área de fumantes, completamente mudado, a expressão de susto quando o fantasma aparece diante do malfeitor para o acerto de contas, iluminado por luz policialesca, girando vermelha e azul, vermelha e azul a pergunta pende –, mas você quer viver ou você quer morrer?”

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Bom dia, rapazes


I.

Após a longa semana de trabalho, qualquer coisa nos autoriza enfim a falar de amor –, rosa amiga dos homens por abrigar em si tantas outras valências, os dedos, de par com certas ideias sublimes, vinhetas de peixe, fritas –, isto , que antes deslizava! A coisa se debate, debate-se acerca da coisa. Quando começa a chiar nas bordas da frigideira, seus fumos preenchendo a cozinha do botequim, está completo, estará incompleto? Quando falamos de amor, como agora, de boca aturdida, dedos malcheirosos, de viagem dos longos trabalhos da semana, longe onde ninguém nos possa tocar, e que nos toquem –, que nos alcancem e toquem –, para tanto estendem-se estes mesmos dedos para trás e para frente, esboço que relembra e pregusta o toque, afinal, ter um gesto, um gesto que seja, neste ar que pesa a peixe e frito. O mesmo gesto que não abole o tempo, que se ilude infantilmente tanto de aboli-lo quanto de atrair a atenção do garçom, um mesmo gesto fragorosamente inútil gemina sonho e lembrança – talvez uma volta larga, executa-se assim com a mão, o indicador em riste –, o resto do corpo em cortejo, humilhado pela nobreza do gesto. Ter um gesto, não uma prevenção, ter um gesto inútil e nobre que a tudo comporte em suas voltas – e isto “nos tempos de agora”. Os pés cruzam-se com os pés da mesa, as coxas enrijecem de súbito –, beleza e sordidez da digestão, passeio , enfim, conhece-se o jogo – nunca é o nosso, o nome que fazemos pairar neste ar viciado, que assinamos sobre as travessas e copos vazios – mas esta volta, propriamente esta série de voltas que fazem os braços, pescoços, barbas, bocas que nos comoveram até então. Liquidados os longos trabalhos da semana, quaisquer que sejam eles, sentaremos num botequim e falaremos de amor perfeitamente cônscios da indesculpabilidade do ato –, como quem já fez o pudor, a confidência – como quem já viveu com alguma profundidade os rigores da amargura e agora e um bocado jovialmente espatifa monóculos contra o balcão. Espatifar os monóculos contra o balcão sem perguntar-se se isto é uma imagem duradoura. Ter um gesto bravo, inútil, nobre, inútil, belo – chamá-lo de amor.

II.


Mais tarde, pouco antes de dormir, revemos – de passagem – estes dedos que sobrevoavam oleosos os destroços da mesa. A imagem filtrará pela página que ora lemos, pelo livro com que nos fomos deitar, zelosamente apagaremos o último cigarro. Ao livro se juntarão então os jorros de nada das mãos sobre a mesa, os fumos desprendidos de determinados gestos – bocas, as barbas, imberbe insistência das barbas em falar de amor, tudo isso cederá lugar enfim ao sono – bloco de perfeita contenção. O sono é ele próprio inútil e nobre, empurra o livro da cama. O livro – previsivelmente, uma compilação de histórias de amor – cai sobre a mesa de cabeceira, entornando o copo de leite. Mas não acordamos, e se acordamos, já é manhã de sábado – a primeira coisa que vemos, afastados do rosto os dedos da noite anterior, é o copo virado, o livro encharcado de leite sobre a mesa de cabeceira. Onde está escrito, a que se refere uma cama vazia? Pondo de lado os cabelos, os dedos da noite anterior, podemos então ver a realidade das coisas – e isso, “parte-nos o coração”? As mãos, cada vez mais antigas, “partem-nos o coração”? As imagens, mais antigas com cada amor, a cega insistência das mãos sobre imagens cada vez mais antigas – “partem-nos ainda o coração”? Certos de que tudo recomeçará – infalivelmente o amor, o trabalho, os livros, nenhuma dimensão heroica –, temos uma breve hesitação antes de buscar o pano e limpar a mesa de cabeceira. Faz sol e não há vento. Colocamos o livro para secar sobre o parapeito.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O Homem Sobrescrito


A começar por um homem. Este –, não ultrapassa uma lauda, o curso de alguns breves parágrafos –, é perfeitamente possível vê-lo pela primeira vez.
Que eu o veja pela primeira vez.
            Ele é conforme —, uma carruagem fantasma? Virá em meu auxílio?
Os senhores nunca têm nada de muito esfíngico a dizer quando venho pedir ajuda para o aluguel, tão logo dobro a esquina improvisam meu antigo quarto em oratório. Passam-se meses, anos me embotando, – tempo ao longo do qual não me lembro de coincidir com nada.
Insisto. É perfeitamente possível vê-lo, isto é, não revê-lo, não guardar deste homem a mais remota lembrança.
Os senhores e seus campos reencarnados; seus olhares de obsidiana compaixão.
Já nada me ocupa tão ferozmente quanto o esforço de não reproduzi-los – aos campos, aos olhares – quando me volto ao homem sobrescrito, a essa pequena dianteira de palavras. Afinal, como gostaria de dizer-lhe – tampouco eu,
tampouco eu enxergo alguma coisa em torno de si
            Com tantas léguas de permeio, é improvável que me faça ouvir. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Joaquim


I.

Aqui, Joaquim. Aqui!
Do outro lado!
Acenando.
Mas ele não esboça reação. Em que pese o fato de estarmos perfeitamente alinhados um diante do outro, trata-se de uma avenida imensa, terrivelmente movimentada, devo ter lido em algum lugar – “uma das vias mais convulsivas da América Latina”.
Sim, estou seguro disso, estamos um diante do outro, suficientemente alinhados para que me veja, ainda que a relances, nos intervalos entre os carros, ônibus, caminhões e demais indicativos de progresso humano.
Súbito, sou varado pela seguinte questão – terá Joaquim se tornado ele próprio um indicativo de progresso humano?
Neste caso, não deve fazer questão de me cumprimentar. Sigo acenando, no entanto, e cada vez mais enfático, cuidando apenas de não acertar as pessoas à minha volta, afinal, não me parece correto que sejam elas a pagar.
Em seguida, outra hipótese me acorre – a de que Joaquim esteja me enxergando perfeitamente, porém, não me reconheça. Afinal, nos últimos cinco ou seis anos, todos nós trocamos de óculos, perseguimos dentes mais brancos, produzimos cães. Fizemos, em suma, o possível para que não nos reconhecessem em multidões como esta.
No entanto, sigo acenando para Joaquim, do outro lado da avenida, enquanto o sinal não fecha.
Com isto, exijo que me reconheça; que o demonstre; que torne, com este gesto, um pouco mais verossímil a minha própria presença nesta cidade abominavelmente hostil (devo ter lido em algum lugar, “uma das mais convulsivas metrópoles...”)

II.

Joaquim dá por mim do outro lado da rua.
Acenando.
Parece satisfeito em me ver.
Não parecerá, no entanto, exageradamente satisfeito?
Há pouco, Joaquim se achava exemplarmente alheio aos arrancos e tropeços ao redor. Agora, contribui às convulsões da avenida com seus próprios arrancos e tropeços.
Estes constituem, a bem da verdade, apenas uma pequena parcela de um vasto repertório físico da aflição. Joaquim estica-se na ponta dos pés; morde o lábio inferior; avança o torso; recua; perde e recobra, em rápida sucessão, o domínio dos braços; seus olhos não se decidem nem pelo sinal nem pelos automóveis, os quais parece tentar apressar com pequenos movimentos espásticos das mãos, agora soltas.

III.

Decido que Joaquim me toma por outro – alguém que deseja, de fato, reencontrar. É curioso pensar em suas mãos há pouco inertes, metidas nos bolsos fronteiros da calça. Apalpava, talvez, algum objeto? Um pacote de pastilhas mentoladas? Um telefone, está coçando?
Um terceiro personagem, pequenino, preso ao fundo do bolso direito, seu minúsculo pescoço bem seguro entre o polegar e o indicador da mão de Joaquim?
Joaquim sente o horror deste personagem, ou melhor, sente-se de alguma maneira impulsionado pelo horror deste personagem? Estaria pensando, antes de me ver – “ainda não, ainda não, espere só até chegarmos no escritório…”?
Com ambas as mãos, abre um sorriso radiante.
Gesticula.
Não sem alguma dificuldade, compreendo afinal que ele me pede para permanecer onde estou, do meu lado da avenida. Os carros param, impacientam-se, ele já vem.
Pare de rosnar, pelo amor de Deus, ele já vem.
Mas como é difícil vencer pela imobilidade, triunfar do fluxo geral em meio a tantos que não medem nem nunca – desconfio – medirão esforços para ganhar o outro lado da avenida.
Todo o peso me abandona. Já não o reconheço.

“Que coincidência extraordinária”, entoamos os dois, praticamente em uníssono.


domingo, 3 de agosto de 2014

Recepção de Boas Vindas; [Você não se lembra como o quanto...]; O Baile dos Invertidos no Magic City

Recepção de Boas Vindas

I’m going down
My uncle did it
My daddy did it…
(The Roches)

Por longo tempo o sol pingava
do funil de uma rua com as américas
agora põe os pés de volta
firmes escamoteados na própria nascença
sólito seria o termo
que nos participaria do quanto
anda seduzido por afirmações que
tais “corre na família” este
mesmo nadador num continuum de errar a raia
ele disse (ele disse) minha loucura
era visceralmente funcionária
ele disse seus pontos e linhas
seus broches e motores para eles
a minha loucura a minha loucura
fez uma boca torta de faisão
“ora ninguém nunca enlouqueceu"

*



Você não se lembra como o quanto
displiçou-se (era difícil
o moto para frente) Liberdade
sobe alguns quinquilhários ao acaso
não soubemos o que fazer das letras
despencadas da marquise
nem dar o instante por rematado
enquanto estivéssemos
no instante
o mais tardar? aquele? longo
tempo pensei enquanto não
comprasse um barbeador elétrico
haveria de permanecer jovem
entanto é consabido há pouco mais
de trinta situações narrativas
das quais podemos partir para o mundo
alguma felicidade esporada um que outro
hoje calça os próprios pés (não
gira) observando de parente alguém
que já não reconhecemos que contudo
não se pode refutar

*


O Baile dos Invertidos no Magic City


com isso a paga da Orquestra Fantasma (os fraques.
Seus locatários de espalhada pelos últimos bondes) refletores
cirúrgicos. Bitters. Bisturis

súbito sinto-me atacado de extrema bondade à altura da nuca. Porque
você me ama, malparado, deixou até a barba crescer. Ou a arte
de cair da mudança, espanar dos ombros esses mínimos cristais, meter
pela turba enlouquecida o mesmo queixo guindado a expensas de


- Sim, por favor, continue.

Figuras em uma Casa (I e II)



(Figuras em Uma Casa, I) 


(Figuras em Uma Casa, II)

E as atrizes de má morte; Cansado de histórias de sucesso


E as atrizes de má morte

Lenta, excruciante comédia de passar à frente do armarinho três, quatro vezes, que as outras possam ver como vai bem, ainda que nos papéis de travessia sofra infinitamente uma Mérilin, estaca numa pedreira, parada, nada soprando do metrô.

(Salta de um segundo piso a voz da moça a serafins. “É música clássica”. Ah.)

À mostra as raízes pretas, o fraco por Grapette e drops tangerina, também os seus excessos (constataremos) fatais.

À mostra é uma pedreira; o armarinho do outro lado; o sol do meio-dia; os uniformes de que fora despedida na semana anterior.

À mostra os dedos de vime, noutra as mãos de velha, enganchando retrato do único Tom, do único Dick, do único Harry a quem sobremaneira amara.

*

Cansado de histórias de sucesso


Dessa ciganagem de tão longe, o nome improvável que o rádio da cozinha tanto martelara na mãe. Já o pai não parece tão certo quanto o campo geado onde pus os tratores.
Tampouco a chaleira apitando – go West.
Na caçamba de uma perua enlameada, entrechoque de garrafas vazias, vodca barata, cola de uva. Baganas pisadas sobre um tatame preto.
Depois, uma espécie de república.
Quatro ou cinco, gente de viela, conhece nas aulas de teatro. O sexo. Onde ponho tratores também.
“Todo mundo tem uma fase São Paulo.”
A questão é o que vem na sequência, vai vestir as enervadas do eixo.
Eleito oráculo de videolocadora.
Quando me encontra, fala sem derramar do amigo que perdeu a memória. Leva pela orla passear. “Peixinho dourado”.
Passados alguns meses, quebra a boutique em Copacabana. Poucas parcelas de saldar a tatuagem da Piaf.
Recomeçar pela undécima vez.
“Como um gato. Pode me jogar do décimo andar que eu...”
Meamos um expresso no saguão do aeroporto. Tinha conseguido trabalho num longa-metragem de baixo orçamento. Não é lá essas coisas, mas tem que fazer a vidinha. Soa sólido.
Soa sólido também. Não era assim que aquele americano financiava seus projetos autorais?
Seria interessante, enfim, poder falar sem chamar mais ninguém a palácio.
A verdade é que isto não é mais possível.
E agora, para onde vai? o que vai fazer depois?
“Vou ficar velho e morrer esperando as condições ideais”

sábado, 2 de agosto de 2014

Ilegibilidade, II



Um idioma até então desconhecido, sempre nos preocupa a questão – até que ponto conseguiremos chegar “com nossos próprios pés”?

De raro em raro, ele areja um pouco a lição. As intrusões dialógicas, por exemplo.

“Que horas são?”, “estou muito atrasado”, “para que lado é o obelisco?”

Nunca nos adiantamos muito às locuções emergenciais. Não era tão mau professor, contudo, ignorava. Uma emergência pode e frequentemente tomará sobre si termos os mais imprevisíveis.

Meus colegas de classe não atinavam bem com isso. Baliam exaustivamente para o quadro-negro –

“Leve-me ao consulado”, “leve-me ao hospital mais próximo”, “leve-me ao consulado”

O abatalhado do idioma a vir, como um chinelo eclodindo na garganta. Como nos torna imperativos, bárbaros, bárbaros, repitam comigo –

“Eu fiz reservas para hoje”, “eu devo partir às oito”, “eu não entendo o que você quer dizer”

Não era tão mau professor. Era um carrasco, um golpista, um vilão. Não tinha nenhuma alegria no erro. Todos os outros eram um pouco para os lados.

sábado, 26 de julho de 2014

Vivalma; Ilegibilidade; A Noite Polar



Vivalma

Está um tipo que rosqueia filtros azuis
não se faz ver senão ao fim dos corredores
armários duas vezes fechados
fechados à chave a madeira fechada
adensada do som do secador a casa
não é uma casa é pura mistificação
arria-se assim pelos sofás
espicha o pescoço ao de leve para a frente
numa inclinação incômoda para a varanda
como se do musgo lago atonasse o perfil
e insistente e azul não chegasse mais nada
está o tipo plenamente imbuído de deixar alguém
estão os sofás sucateados como as rosas
está o felpo da rosa cobrindo tudo
narinas adentro formigando nos brônquios
dentro da arca a mesma guarda da ferrugem
o contra-argumento de uma crise de asma

*

Ilegibilidade

de como os da antessala me induziram em erro
“Não hostis”, pensei, “consonantais”
estaria pigarreando ali no canto não sei mais quantas horas
não fosse um senhor de bigodes fartos dar acordo
e um silêncio de cabala tomar o bar pelos pulsos
os bigodes destacaram-se do grupo
menção para que os seguisse
sim através de umas portas pesadas de mogno
uma peça de iluminação reta
claro aberto no meio do turfe
o alinhamento impiedoso das mesas soa uma nota de refeitório escolar
entregue à mocinha do avental
uma mesa ao centro a porta a meio caminho de fechar
àquela altura porém a do avental já devia ser outra
talvez uma gêmea embora não saiba de quê
“Como é bom sentir-se amado”, pensei
o cardápio redigido em caracteres nativos

*

A Noite Polar

O sol aguça já os cacos de vidro
sobre o calçamento, embora

escrito sem o sol com
a sempre muda superfície do café
por caixas de papelão
que calam casa
fora, escrito

na gaze, na vitrina
espedaçada com
a vitrina espedaçada,
a fechar um pavão
de dias inúteis.

Deles, sabe-se apenas
que virão outros

às iterações reiterações
deste mesmo
pulso e preparos
para a noite polar –

coxas, antes das mãos, lábios
que industriamos
para a redundância.

sábado, 12 de julho de 2014

"Vou a Roma, para ser de novo crucificado"



(Araraquara, junho de 2014)

Tempestades, vícios

que tipo de megera
me tornei o tipo que

roufenho a certo
amigo escavado ao

acaso a um café: e tu também
te cansarás um dia 

de responder a e-mails
em redondilha menor deus

de que misericordioso
rasgo! meus olhos

em tudo excedidos enfim
cifram-se neste cigarro

queimando entre
os cigarros os amigos

a quem tento me
explicar há anos

serão sempre antes
depois o canteiro

perquirido segue breu
de qualquer palavra

sua que me pudesse
consolar desta bateria

de romances em que o
sono me atirou só

dou por um gesto
de resto um bocado

largado já mal se divisa
através da manhã

poucas as coisas
que hoje me ocorrem

em verso -- entanto
há anos busco

adiantar-me ao gesto
surpreendê-lo

uma esquina adiante
dizer raio relâmpago

conflagração
- o mundo, o mundo -

tempestades vícios
vejam – tudo é trabalho

Aula Inaugural

Dizia-nos Dona Dileta
do único fio turmalina
sobre tailleur azul lavado
– os cabelos ralos de quem vem
bombardeada a Interferon –
“uma solidão de matriz ibseniana.
Um reloginho". O conceito
de cena (sob o prisma
de uma alvenaria implacável).
Lá fora, (zune) o vasto céu
dos estudantes de teatro, tudo
menos minudente: o manicuro
do dia, ponto da madrepérola,
lembramos tanto silêncio inábil
em restaurar os monumentos
pelos quais de certeza passamos.
Um único fio turmalina; o cinismo
de nossos rabos-de-cavalo; o jardim
azul lavado onde torcemos
seguidamente os pés a caminho
da alameda dos bancos

Inventário do Tempo


Tento aprender os nomes do porto
os muitos nomes do porto

envidam voltas
calmas cacheiam

nossas
- em voltas -
cabeças

pela orla sempre
postergada o

que foi preciso
(o que foi mais preciso)
atravessar?

a manhã
a maquete de um bosque
a caminho
da confeitaria polonesa

mais tarde
o sono fazemos
por uma aleia de gravetos
fazemos
um rufo
de passos sobre

surpreende-me
ler num livro
qualquer
a palavra embocadura

outra competência do azul
em altitudes elevadas

o autor descreve
os impermeáveis de Bleston –

cor de cão vadio
cor de farelo
cor de algas mortas

Resultados Milagrosos


“Meu filho adolescente anda a ler os estoicos”, ele disse
uma janela domina
(não há outra palavra para)
relutância em admitir que a luz é âmbar
(sendo as velas um perigo para o edifício inteiro)
então escrevi a meu pai o médico
não excluía de todo a possibilidade de uma hérnia
era Lídia
quem me respondia agora era o olho direito
ou seja, a cirurgia
vou perguntar mais uma vez “de quem é essa letra?”
meus irmãos, bem entendido, não disseram nada
tiveram outra criação
não pude me conter quando ele se confessou triste por estar ausente do consultório há mais de uma semana
(estranho, não? a vida fora contemplando um bocado monasticamente
a ideia do suicídio
para ser acometido tão logo divisasse a curva dos trinta por esse – como se diz? – “insuportável desejo de viver”)
não, talvez não
lançou um olhar um depois do outro sobre eles e disse quero a sua idade
“será possível sem o recurso às cifras?”
não eu não vou descansar
não eu não vou descansar até que
não vou aceitar não como não vou aceitar como não como não como resposta
não consigo cogitar dos fatores que levam um Indivíduo a optar pela Medicina
(ele pretende, de fato, reembolsar o atual amante de sua esposa pela passagem?)
e afinal quando eles chegam não configura exatamente distensão
pelo contrário
resta sempre engatilhado o medo de folhear aquele antigo volume e reencontrar-lhe uma mesma inflamação nas amígdalas
não comigo só (o caso de tão brandos reencontros)
a caminho do cinema, vejo-me obrigado a explicar para minha mãe que nossa última entrevista não foi triste e sim
construtiva
“é bom que a casa fica mais arrumada” sim
que mais que ela faz?
ela domina (não há outra palavra para) certo configuro de muros e telhas
e as cheíssimas sombras da vizinha bromélia
concordo –, isto não é vida
sente-se nos quadris a troca de estação
retiro o casaco de seus referentes
esta planta é de mau tom
minha família inteira resolve colocar as diferenças de lado e reunir-se num armazém do cais do porto
no intuito de me alertar para

A Juventude é Uma Invenção Fabulosa (Investigação Sobre Os Amigos do Meu Irmão)



("Dois retratos de Vinicius Cardinali", Araraquara, julho de 2014)

Não, Não


Não é boa vizinhança afirmá-lo

Todos estão brandos estas são as estações brandas

minha mãe um dos muitos pátios que urge varrer
ora sei que é preciso murar-se
o poema
deve-se sentá-lo pelas quatro estações de um ano terrível
o que nos diz o terminal quando para de ondear
do verão, procure ouvir
aqui está
quente morno temperado
aqui não há quase estações falando verdade
o homem ordinário é uma tara que muitos outros mundos são esses?
há um reparo amarelo aqui não há quase um clima
fora o indulto de licenças poéticas
aqui o tempo está esplêndido escreve-me
certa gente que não vejo há meses


*


Não é caso de se levantar


Eu não sei a diferença entre a coerência & a coerência &

a repetição caligem fósseis conterraneidade ruidosa 
no verso 
algo à maneira de uma tosse 
seca e não consigo dar
um décimo andar sobre nada cravado
de ventos frios 
onde sinto-me perder a variante decisiva
“minha vida” 
foi que abriram tanto
florão buquê parentético eu não sei 
quem sabe a coisa que o vento 
avulsa de mim assina 
um casario alegre & deitado 
por terra. Onde sinto-me perder até as latentes


*

Não há uma só palavra para junho

Como os hemisférios desvairam
entre si
não há uma só palavra para junho,
nem mesmo
julho, agosto, setembro, não há
isto que há, que escrevo agora,
uma bela manhã”,
isto que escrevo e numa língua
em que eu talvez não seja nascido,
oportunos azuis, amarelos, um poema 
a que não comparecem
testemunhas, uma luz 
que noite de tão 
longe. Este é o planeta – já estamos
consolados? –, ele se move
para criar um diferendo, outros 
rincões 
onde partir não significa
bem isto