segunda-feira, 26 de maio de 2014

Giovanni, Valsa sem Lilás, Outro Sonho com Acordeão


Giovanni

Será melhor recordá-lo assim
laca branca
recostado ao batente da boa estação
um rol de atributos a olhar em frente
então uns quantos numerais

***

Valsa sem Lilás

Um rapaz prodigioso
ninguém sabe as mós de que é
capaz de produzir despedidas de anos, de anos

***

Outro Sonho com Acordeão

Levarei à lapela um canário morto
por seu ar beato, indiferente
você então me identificará, alguns dedos atrás do canário
estarei cantando e jovem
cantaremos, eu e você, até que o paletó amanheça
por todos os lados um canário
canta
cantará sem contrassenso

quinta-feira, 22 de maio de 2014

"28 anos, desempregado, lendo Rimbaud no play"




(Este autorretrato se chama "28 anos, desempregado, lendo Rimbaud no play")

***

O Heringer me fez algumas perguntas, tentei responder da maneira mais graciosa possível. Alguns textos meus saíram nesta revista e neste blog. Fiz uma cançoneta com meu amigo Dimitri BR, e você pode escutá-la e cantar junto aqui


Algumas Mães




(Fernanda, Maio de 2014)

***

Desde que pôs os pés aqui dentro, já quase não tenho forças para visitar ninguém. Isto deve ter sido em fins de março. De lá para cá, não houve um só instante de paz. Abro a porta e lá está ela: minha mãe, em chamas. Tento me explicar, que não posso, não estou em casa, mas ela me ignora, passa por mim. Estalando. De nervos. Senta-se no sofá sem dar acordo do que digo. O que é, mãe? É dinheiro? Precisa de dinheiro? São os tranquilizantes? Eu não tenho tranquilizantes. O que tenho? Receio que as línguas de fogo acabem se alastrando pelo sofá, mas parecem inteiramente circunscritas à sua figura breve, acaixotada. Ela já não foi assim, evidente, houve tempo que não era assim --, como nos comove pensar que houve tempo que não era assim, que eu não andava tão ocupado --, da missa a metade --, coloco uma distância avisada. Longo tempo permaneço chegado à porta, a mão sobre a maçaneta, o rosto voltado em sua direção. Minha mãe se volta com o fogo para mim. Minha mãe se volta com o fogo para mim. Minha mãe faz com o fogo inúmeros gestos exasperados sem finalidade aparente. Crepita, estala, balbucia. Sua voz rompe o mosquiteiro negro e ocupa com um espesso ruído eletrônico. Essa voz, esse som, tão volumoso que não consigo me acercar. Continuo chegado à porta, a mão na maçaneta, o rosto voltado em sua direção. O que significa? Que derrota tomar? Ela se volta com o fogo para mim. No corredor, uma pinha de passantes. Limpo a garganta, tusso, peço desculpas. Como é antigo este vaudeville. Devo pegar um balde d’água, minha mãe? Devo tremer? Devo telefonar para alguém? Quer que eu prepare um escalda-pés? Pequenos pedaços chamuscados de papel vão saltando dela, antes de pousarem no piso riscado riscam no ar uns adejos tolos – sei que se trata de um pedido, sei que querem algo de mim, algo talvez importantíssimo, mas o quê? Sinto-me culpado, não sei que derrota tomar, rebusco em mim mesmo algum escrúpulo de lealdade. Afinal, exaspero-me também. Tenho inúmeras pendências a resolver, se não me ocupar delas, quem terá a caridade de fazê-lo por mim? Não é exatamente razoável ressentir-se de alguém a quem se ateou fogo, mas tente compreender --, o proprietário nos deu apenas dois meses para devolver o apartamento nas condições em que se encontrava quando nos mudamos, e além do mais, meu corpo sempre dana-se todo da mais leve flutuação climática. Já o corpo de minha mãe, envolto que está em labaredas que se erguem até ao teto sem exatamente recuá-lo, parece irredutível. Eu e ele nada podemos. Ela também, tampouco se consome, ela nem nada. Como nada se consome ela e o fogo e eu e o fogo e ela e o fogo e eu seguimos gesticulando exasperadamente, ocupam horríveis guinchos eletrônicos, adejam pela sala pedacinhos negros de papel fotográfico. Murilo volta da despensa visivelmente irritado. Tem nas mãos uma vassoura e uma pá. Sempre referi-me às polaroides do parto como “um banho de sangue”. Ó mãe, devo tremer? Posso tremer?


***


Mãe, minha mãe, nunca escrevi poemas tão bons. Não peço que a senhora tente entendê-los, não peço que os esmiúce, não peço que a senhora lhes tire, um a um, os fiapos de linho; peço que deixe os fiapos onde estão; peço apenas que tenha fé, que acredite, como eu, que estes poemas poderão um dia nos tirar daqui. Passei boa parte da manhã de ontem relendo cadernos antigos; posso assegurar-lhe agora, mãe, nenhum sofrimento é razoável, ninguém nos tenta, ninguém procura nos perder. Mais tarde, ao telefone com Murilo, disse-lhe que podia agora acompanhar minhas próprias desventuras passadas com algum distanciamento, como se se tratasse de um estranho. Mas não se trata de um estranho, não, em absoluto. É evidente que me reconheço – que me reconheço em cada gesto narrativo, em cada recorte; é evidente que não me esqueço de nada; que não é do meu talhe esquecer. No entanto, anda por lá uma ausência. Existimos, eu e ele, eu e aquele outro, em suportes diversos. Ele se deteve, não perfez (não perfaz) um ciclo. Mesmo àquela época, já se mostrava preocupado em fixar o tempo, buscava compreender as implicações; repetia de mim para mim, cada vez que me sentava para escrever, repetia como um conjuro que a importância daqueles registros só se revelaria mais tarde, muito mais tarde; que, em algum momento, aquele cheiro bom a alho que subia do apartamento logo abaixo se mostraria absolutamente crucial; que eu me comprometia a continuar existindo, nem que fosse apenas para acompanhar este processo, a vinda disto, a abertura disto; que eu me fixaria aqui, que eu me domiciliaria aqui, até que a memória se mostrasse, de fato, necessária. Foi uma espera longa e acidentada, minha mãe, mas pude comprová-lo ontem pela manhã: o tempo funciona, não descura de nada. 

Essa é a última vez que me coloco em causa com tanta violência. Eu já tive muitas dúvidas; a senhora também, Venerada, já deve ter sido acometida de desconfiança parelha, já deve ter pensado que aquelas coisas, aquelas coisas não parariam nunca mais de acontecer; que acabariam por fazer o barranco ruir; que acabaríamos todos soterrados e que um dia, talvez, um dia ainda nos viriam importunar atrás dos usos e costumes de antiquíssimas metrópoles... Enfim, talvez eu próprio não acredite tão piamente nessas casas que tenho dito. São demasiado altas, demasiado imateriais, quase não fazem sombra, é uma libração precária. 

O apartamento ao final do corredor foi desocupado há pouco e passa atualmente por uma série de reformas. Tenho parado com frequência diante daquela porta, o mesmerefeito de sua brancura; até a sujeira que se insinua pela fresta me parece nova, impecável; bem pouco provável que rastejem dali folhas escuras e quebradiças de outono. Quem morará lá, eu me pergunto – quem morará em parte alguma? Alguém como você, alguém como eu, como nós? Meu rosto voltou a dar coices essa semana, como não fazia há mais de dez anos, e embora não seja possível escrever com espelhos, por vezes somos quase idênticos a nós mesmos. Falta pouco, minha mãe, é preciso acreditar, falta pouco para que toda essa miséria acabe de uma vez por todas. 

Hoje sonhei que uma mulher chorava, aferrada, muda, diante do túmulo de seu primogênito no cemitério de um vilarejo russo.