quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O Homem Sobrescrito


A começar por um homem. Este –, não ultrapassa uma lauda, o curso de alguns breves parágrafos –, é perfeitamente possível vê-lo pela primeira vez.
Que eu o veja pela primeira vez.
            Ele é conforme —, uma carruagem fantasma? Virá em meu auxílio?
Os senhores nunca têm nada de muito esfíngico a dizer quando venho pedir ajuda para o aluguel, tão logo dobro a esquina improvisam meu antigo quarto em oratório. Passam-se meses, anos me embotando, – tempo ao longo do qual não me lembro de coincidir com nada.
Insisto. É perfeitamente possível vê-lo, isto é, não revê-lo, não guardar deste homem a mais remota lembrança.
Os senhores e seus campos reencarnados; seus olhares de obsidiana compaixão.
Já nada me ocupa tão ferozmente quanto o esforço de não reproduzi-los – aos campos, aos olhares – quando me volto ao homem sobrescrito, a essa pequena dianteira de palavras. Afinal, como gostaria de dizer-lhe – tampouco eu,
tampouco eu enxergo alguma coisa em torno de si
            Com tantas léguas de permeio, é improvável que me faça ouvir. 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Joaquim


I.

Aqui, Joaquim. Aqui!
Do outro lado!
Acenando.
Mas ele não esboça reação. Em que pese o fato de estarmos perfeitamente alinhados um diante do outro, trata-se de uma avenida imensa, terrivelmente movimentada, devo ter lido em algum lugar – “uma das vias mais convulsivas da América Latina”.
Sim, estou seguro disso, estamos um diante do outro, suficientemente alinhados para que me veja, ainda que a relances, nos intervalos entre os carros, ônibus, caminhões e demais indicativos de progresso humano.
Súbito, sou varado pela seguinte questão – terá Joaquim se tornado ele próprio um indicativo de progresso humano?
Neste caso, não deve fazer questão de me cumprimentar. Sigo acenando, no entanto, e cada vez mais enfático, cuidando apenas de não acertar as pessoas à minha volta, afinal, não me parece correto que sejam elas a pagar.
Em seguida, outra hipótese me acorre – a de que Joaquim esteja me enxergando perfeitamente, porém, não me reconheça. Afinal, nos últimos cinco ou seis anos, todos nós trocamos de óculos, perseguimos dentes mais brancos, produzimos cães. Fizemos, em suma, o possível para que não nos reconhecessem em multidões como esta.
No entanto, sigo acenando para Joaquim, do outro lado da avenida, enquanto o sinal não fecha.
Com isto, exijo que me reconheça; que o demonstre; que torne, com este gesto, um pouco mais verossímil a minha própria presença nesta cidade abominavelmente hostil (devo ter lido em algum lugar, “uma das mais convulsivas metrópoles...”)

II.

Joaquim dá por mim do outro lado da rua.
Acenando.
Parece satisfeito em me ver.
Não parecerá, no entanto, exageradamente satisfeito?
Há pouco, Joaquim se achava exemplarmente alheio aos arrancos e tropeços ao redor. Agora, contribui às convulsões da avenida com seus próprios arrancos e tropeços.
Estes constituem, a bem da verdade, apenas uma pequena parcela de um vasto repertório físico da aflição. Joaquim estica-se na ponta dos pés; morde o lábio inferior; avança o torso; recua; perde e recobra, em rápida sucessão, o domínio dos braços; seus olhos não se decidem nem pelo sinal nem pelos automóveis, os quais parece tentar apressar com pequenos movimentos espásticos das mãos, agora soltas.

III.

Decido que Joaquim me toma por outro – alguém que deseja, de fato, reencontrar. É curioso pensar em suas mãos há pouco inertes, metidas nos bolsos fronteiros da calça. Apalpava, talvez, algum objeto? Um pacote de pastilhas mentoladas? Um telefone, está coçando?
Um terceiro personagem, pequenino, preso ao fundo do bolso direito, seu minúsculo pescoço bem seguro entre o polegar e o indicador da mão de Joaquim?
Joaquim sente o horror deste personagem, ou melhor, sente-se de alguma maneira impulsionado pelo horror deste personagem? Estaria pensando, antes de me ver – “ainda não, ainda não, espere só até chegarmos no escritório…”?
Com ambas as mãos, abre um sorriso radiante.
Gesticula.
Não sem alguma dificuldade, compreendo afinal que ele me pede para permanecer onde estou, do meu lado da avenida. Os carros param, impacientam-se, ele já vem.
Pare de rosnar, pelo amor de Deus, ele já vem.
Mas como é difícil vencer pela imobilidade, triunfar do fluxo geral em meio a tantos que não medem nem nunca – desconfio – medirão esforços para ganhar o outro lado da avenida.
Todo o peso me abandona. Já não o reconheço.

“Que coincidência extraordinária”, entoamos os dois, praticamente em uníssono.


domingo, 3 de agosto de 2014

Recepção de Boas Vindas; [Você não se lembra como o quanto...]; O Baile dos Invertidos no Magic City

Recepção de Boas Vindas

I’m going down
My uncle did it
My daddy did it…
(The Roches)

Por longo tempo o sol pingava
do funil de uma rua com as américas
agora põe os pés de volta
firmes escamoteados na própria nascença
sólito seria o termo
que nos participaria do quanto
anda seduzido por afirmações que
tais “corre na família” este
mesmo nadador num continuum de errar a raia
ele disse (ele disse) minha loucura
era visceralmente funcionária
ele disse seus pontos e linhas
seus broches e motores para eles
a minha loucura a minha loucura
fez uma boca torta de faisão
“ora ninguém nunca enlouqueceu"

*



Você não se lembra como o quanto
displiçou-se (era difícil
o moto para frente) Liberdade
sobe alguns quinquilhários ao acaso
não soubemos o que fazer das letras
despencadas da marquise
nem dar o instante por rematado
enquanto estivéssemos
no instante
o mais tardar? aquele? longo
tempo pensei enquanto não
comprasse um barbeador elétrico
haveria de permanecer jovem
entanto é consabido há pouco mais
de trinta situações narrativas
das quais podemos partir para o mundo
alguma felicidade esporada um que outro
hoje calça os próprios pés (não
gira) observando de parente alguém
que já não reconhecemos que contudo
não se pode refutar

*


O Baile dos Invertidos no Magic City


com isso a paga da Orquestra Fantasma (os fraques.
Seus locatários de espalhada pelos últimos bondes) refletores
cirúrgicos. Bitters. Bisturis

súbito sinto-me atacado de extrema bondade à altura da nuca. Porque
você me ama, malparado, deixou até a barba crescer. Ou a arte
de cair da mudança, espanar dos ombros esses mínimos cristais, meter
pela turba enlouquecida o mesmo queixo guindado a expensas de


- Sim, por favor, continue.

Figuras em uma Casa (I e II)



(Figuras em Uma Casa, I) 


(Figuras em Uma Casa, II)

E as atrizes de má morte; Cansado de histórias de sucesso


E as atrizes de má morte

Lenta, excruciante comédia de passar à frente do armarinho três, quatro vezes, que as outras possam ver como vai bem, ainda que nos papéis de travessia sofra infinitamente uma Mérilin, estaca numa pedreira, parada, nada soprando do metrô.

(Salta de um segundo piso a voz da moça a serafins. “É música clássica”. Ah.)

À mostra as raízes pretas, o fraco por Grapette e drops tangerina, também os seus excessos (constataremos) fatais.

À mostra é uma pedreira; o armarinho do outro lado; o sol do meio-dia; os uniformes de que fora despedida na semana anterior.

À mostra os dedos de vime, noutra as mãos de velha, enganchando retrato do único Tom, do único Dick, do único Harry a quem sobremaneira amara.

*

Cansado de histórias de sucesso


Dessa ciganagem de tão longe, o nome improvável que o rádio da cozinha tanto martelara na mãe. Já o pai não parece tão certo quanto o campo geado onde pus os tratores.
Tampouco a chaleira apitando – go West.
Na caçamba de uma perua enlameada, entrechoque de garrafas vazias, vodca barata, cola de uva. Baganas pisadas sobre um tatame preto.
Depois, uma espécie de república.
Quatro ou cinco, gente de viela, conhece nas aulas de teatro. O sexo. Onde ponho tratores também.
“Todo mundo tem uma fase São Paulo.”
A questão é o que vem na sequência, vai vestir as enervadas do eixo.
Eleito oráculo de videolocadora.
Quando me encontra, fala sem derramar do amigo que perdeu a memória. Leva pela orla passear. “Peixinho dourado”.
Passados alguns meses, quebra a boutique em Copacabana. Poucas parcelas de saldar a tatuagem da Piaf.
Recomeçar pela undécima vez.
“Como um gato. Pode me jogar do décimo andar que eu...”
Meamos um expresso no saguão do aeroporto. Tinha conseguido trabalho num longa-metragem de baixo orçamento. Não é lá essas coisas, mas tem que fazer a vidinha. Soa sólido.
Soa sólido também. Não era assim que aquele americano financiava seus projetos autorais?
Seria interessante, enfim, poder falar sem chamar mais ninguém a palácio.
A verdade é que isto não é mais possível.
E agora, para onde vai? o que vai fazer depois?
“Vou ficar velho e morrer esperando as condições ideais”

sábado, 2 de agosto de 2014

Ilegibilidade, II



Um idioma até então desconhecido, sempre nos preocupa a questão – até que ponto conseguiremos chegar “com nossos próprios pés”?

De raro em raro, ele areja um pouco a lição. As intrusões dialógicas, por exemplo.

“Que horas são?”, “estou muito atrasado”, “para que lado é o obelisco?”

Nunca nos adiantamos muito às locuções emergenciais. Não era tão mau professor, contudo, ignorava. Uma emergência pode e frequentemente tomará sobre si termos os mais imprevisíveis.

Meus colegas de classe não atinavam bem com isso. Baliam exaustivamente para o quadro-negro –

“Leve-me ao consulado”, “leve-me ao hospital mais próximo”, “leve-me ao consulado”

O abatalhado do idioma a vir, como um chinelo eclodindo na garganta. Como nos torna imperativos, bárbaros, bárbaros, repitam comigo –

“Eu fiz reservas para hoje”, “eu devo partir às oito”, “eu não entendo o que você quer dizer”

Não era tão mau professor. Era um carrasco, um golpista, um vilão. Não tinha nenhuma alegria no erro. Todos os outros eram um pouco para os lados.