sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Insignificância


Vá trabalhar, anjo.
Nenhuma paixão é realmente capaz de substituir o álcool
afora, talvez, o dinheiro.
Foi assim que construí meu império.
Probidade.
De repente ficou tão humilde que mal consegue deixar o terraço
quando
a chuva quebra seus primeiros frascos de amônia na calçada,
os anjos infiltrados na mureta
dão um dó, diz
que emborcou dois imóveis no Flamengo em menos de dez anos,
ali perto da praia.
Repete.
Repete para você ver
que não me faltam experiências.
Vê-se logo que é um sujeito incapaz de se sacrificar por coisa alguma.
Vê-se logo, um aventureiro, às vezes
tomar o caminho mais longo, aquele
que passa pelos botecos que assombrávamos à época.
Ponho a cabeça na chuva,
já não reconheço ninguém.
Galgando ladeiras sempre com grande tormento para todos.
Pois bem, onde já se viu um wunderkind de trinta anos de idade?
A última crise de fé espocou nos idos da graduação.
Em dado momento vi-me forçado a abandonar a cidade, tão exausto
andava de parabenizar os meus.
Eu sou o filho ônibus do Kapital.
Às vezes me pergunto como certamente você

você
você
você

e este homem espigado atrás de mim –,
quem vem lá? A visita inesperada de um moinho.
A Perseverança.
Tão fora de esquadro com as dimensões desse sótão.
Um homem bem-nascido pode se dar ao desfrute de ser paciente.
Quanto a mim, sigo em minhas devoções. Acho que nunca encontrarei
uma saída.
O cansaço saiu-lhe aos braços, a voz
saía-lhe uma fazenda branca.
A cara toda pegada de sólidos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Surdinado


manca ancora il silenzio nella mia vita.”
- Eugenio Montale


Inútil dizer que digo

o que digo e a fala espirala.

Já é tarde motim
afirmar,

colher
um formigamento debaixo
do piso,
encerar o círculo
mágico, ao santo de barro

empurrá-lo um lanço
de escadas,

tão tarde,
tão tarde

motim,

Vir fantasma,
metrônomo,
escapado
de muitas vozes,

mas isto
não é
a diferença
(o que eu procurava)

O que eu
procurava?

O direito de estar
entre as coisas

pleno entendimento
daquilo que me dão
daquilo que me negam

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Nu Sobre Uma Duna


Subiria de volta à duna,
veria nela a respiração que toda a gente vê?
Pisava-a?
Despia os shorts
primeiro
a retórica da nudez
mudava-se enfim
diante dos meus olhos
numa imagem
a imagem de uma duna
encimando-a
um homem nu
é nesta competência que você
ocorre
aos homens esgotados
é neste
movediço que
o engole
a fantasia de outro
é aqui
diante dos meus olhos
você se torna imaginário
você some

domingo, 2 de novembro de 2014

Fantasia Acerca da Dignidade dos Homens, I


Que fazia em meu lugar um homem digno, um homem de princípios elementais?
Esvaziadas já todas as peças, põe-se a folhear a varanda.
Volta-se ao corretor.
“A vista é muito graciosa, decerto, mas com ela não se pode limpar o rabo”.
Eis aí um homem sensato.
Sensato, como se vê, jovial.
(Disse uma verdade, o firmamento não veio abaixo).
Agora partem os dois em busca de coisa mais compreensível.
A mim, deixam-me quieto.
Que mais posso pedir?
Em sonhos, no entanto, alteio-me ao centro da sala.
Eis aí um homem sensato, de voz ancorada, voz que fundeia o navio.
Olhos fitos em cada um deles.
Que faz este leme no canto da sala? O que quer dizer, que querem dizer com isso?
Sou um homem.
Destes homens que dizem coisas como –, “não saio daqui sem respostas”.
Um homem digno, enfim.
Este homem, que fazia este homem para tirar da grande revelação a grande revelação?
É de supor que já se tenha defrontado em algum momento com o problema do teatro.
O problema da representação.
O problema da afirmação decisiva.
Como terá resolvido o problema da afirmação decisiva?
Como parece tranquilo, afinal.
Debruçado à varanda, traz para dentro dos ossos a impossibilidade, embala-o (dentro dos ossos) o reproche maternal do tempo.
Remediado está.
Remediado está.
Não consigo interromper a costura do fantasma.
Mancheias de sangue no interruptor.
Talvez sejam minhas.
Que sei eu?
Ele é digno como os sonhos, mas ele se move.
Ele se move pela estatuária –, grotesca –, não há como contornar –, apalpa umas corujinhas de louça.
Que fazia das medalhas, este homem, das medalhas?
Cortavam-nos os pés.
Cortávamos os pés nas medalhas, voltando da praia.
Os anos já não comportavam tanta boa vontade.
Tanto “sacrifício”.
E no entanto, aquilo continuava.
Que fazia dos anos, fazia que não dava por eles? Que não tinham peso, gravidade?
Fazia como os homens que levam num frasco a bala que por pouco não os matou?
Que fazia a respeito dos quadros, destes quadros com os galos, por exemplo?
São odiosos, não há quem não o reconheça.
No entanto, pelo que sei, jamais moveu-se uma palha para tirá-los do lugar.
Agrada-me a ideia do leilão, é civilizada (civilizada demais para nós, se querem mesmo saber).
Dói-me, no entanto, que os vestidos dela não conheçam o fogo.
Creio tratar-se de um impasse objetivo.
Nada disto dançará selvagemente?
Nada conhecerá a blasfêmia?
Não conhecerão o fogo
.......................... o leme
...........................as corujas
...........................os galos
...........................os malditos galos?
Vamos lá, responda.
Que fazia em meu lugar um homem digno?
Matava-se.
Ou isto ou sumia no mundo.