sábado, 26 de julho de 2014

Vivalma; Ilegibilidade; A Noite Polar



Vivalma

Está um tipo que rosqueia filtros azuis
não se faz ver senão ao fim dos corredores
armários duas vezes fechados
fechados à chave a madeira fechada
adensada do som do secador a casa
não é uma casa é pura mistificação
arria-se assim pelos sofás
espicha o pescoço ao de leve para a frente
numa inclinação incômoda para a varanda
como se do musgo lago atonasse o perfil
e insistente e azul não chegasse mais nada
está o tipo plenamente imbuído de deixar alguém
estão os sofás sucateados como as rosas
está o felpo da rosa cobrindo tudo
narinas adentro formigando nos brônquios
dentro da arca a mesma guarda da ferrugem
o contra-argumento de uma crise de asma

*

Ilegibilidade

de como os da antessala me induziram em erro
“Não hostis”, pensei, “consonantais”
estaria pigarreando ali no canto não sei mais quantas horas
não fosse um senhor de bigodes fartos dar acordo
e um silêncio de cabala tomar o bar pelos pulsos
os bigodes destacaram-se do grupo
menção para que os seguisse
sim através de umas portas pesadas de mogno
uma peça de iluminação reta
claro aberto no meio do turfe
o alinhamento impiedoso das mesas soa uma nota de refeitório escolar
entregue à mocinha do avental
uma mesa ao centro a porta a meio caminho de fechar
àquela altura porém a do avental já devia ser outra
talvez uma gêmea embora não saiba de quê
“Como é bom sentir-se amado”, pensei
o cardápio redigido em caracteres nativos

*

A Noite Polar

O sol aguça já os cacos de vidro
sobre o calçamento, embora

escrito sem o sol com
a sempre muda superfície do café
por caixas de papelão
que calam casa
fora, escrito

na gaze, na vitrina
espedaçada com
a vitrina espedaçada,
a fechar um pavão
de dias inúteis.

Deles, sabe-se apenas
que virão outros

às iterações reiterações
deste mesmo
pulso e preparos
para a noite polar –

coxas, antes das mãos, lábios
que industriamos
para a redundância.

sábado, 12 de julho de 2014

"Vou a Roma, para ser de novo crucificado"



(Araraquara, junho de 2014)

Tempestades, vícios

que tipo de megera
me tornei o tipo que

roufenho a certo
amigo escavado ao

acaso a um café: e tu também
te cansarás um dia 

de responder a e-mails
em redondilha menor deus

de que misericordioso
rasgo! meus olhos

em tudo excedidos enfim
cifram-se neste cigarro

queimando entre
os cigarros os amigos

a quem tento me
explicar há anos

serão sempre antes
depois o canteiro

perquirido segue breu
de qualquer palavra

sua que me pudesse
consolar desta bateria

de romances em que o
sono me atirou só

dou por um gesto
de resto um bocado

largado já mal se divisa
através da manhã

poucas as coisas
que hoje me ocorrem

em verso -- entanto
há anos busco

adiantar-me ao gesto
surpreendê-lo

uma esquina adiante
dizer raio relâmpago

conflagração
- o mundo, o mundo -

tempestades vícios
vejam – tudo é trabalho

Aula Inaugural

Dizia-nos Dona Dileta
do único fio turmalina
sobre tailleur azul lavado
– os cabelos ralos de quem vem
bombardeada a Interferon –
“uma solidão de matriz ibseniana.
Um reloginho". O conceito
de cena (sob o prisma
de uma alvenaria implacável).
Lá fora, (zune) o vasto céu
dos estudantes de teatro, tudo
menos minudente: o manicuro
do dia, ponto da madrepérola,
lembramos tanto silêncio inábil
em restaurar os monumentos
pelos quais de certeza passamos.
Um único fio turmalina; o cinismo
de nossos rabos-de-cavalo; o jardim
azul lavado onde torcemos
seguidamente os pés a caminho
da alameda dos bancos

Inventário do Tempo


Tento aprender os nomes do porto
os muitos nomes do porto

envidam voltas
calmas cacheiam

nossas
- em voltas -
cabeças

pela orla sempre
postergada o

que foi preciso
(o que foi mais preciso)
atravessar?

a manhã
a maquete de um bosque
a caminho
da confeitaria polonesa

mais tarde
o sono fazemos
por uma aleia de gravetos
fazemos
um rufo
de passos sobre

surpreende-me
ler num livro
qualquer
a palavra embocadura

outra competência do azul
em altitudes elevadas

o autor descreve
os impermeáveis de Bleston –

cor de cão vadio
cor de farelo
cor de algas mortas

Resultados Milagrosos


“Meu filho adolescente anda a ler os estoicos”, ele disse
uma janela domina
(não há outra palavra para)
relutância em admitir que a luz é âmbar
(sendo as velas um perigo para o edifício inteiro)
então escrevi a meu pai o médico
não excluía de todo a possibilidade de uma hérnia
era Lídia
quem me respondia agora era o olho direito
ou seja, a cirurgia
vou perguntar mais uma vez “de quem é essa letra?”
meus irmãos, bem entendido, não disseram nada
tiveram outra criação
não pude me conter quando ele se confessou triste por estar ausente do consultório há mais de uma semana
(estranho, não? a vida fora contemplando um bocado monasticamente
a ideia do suicídio
para ser acometido tão logo divisasse a curva dos trinta por esse – como se diz? – “insuportável desejo de viver”)
não, talvez não
lançou um olhar um depois do outro sobre eles e disse quero a sua idade
“será possível sem o recurso às cifras?”
não eu não vou descansar
não eu não vou descansar até que
não vou aceitar não como não vou aceitar como não como não como resposta
não consigo cogitar dos fatores que levam um Indivíduo a optar pela Medicina
(ele pretende, de fato, reembolsar o atual amante de sua esposa pela passagem?)
e afinal quando eles chegam não configura exatamente distensão
pelo contrário
resta sempre engatilhado o medo de folhear aquele antigo volume e reencontrar-lhe uma mesma inflamação nas amígdalas
não comigo só (o caso de tão brandos reencontros)
a caminho do cinema, vejo-me obrigado a explicar para minha mãe que nossa última entrevista não foi triste e sim
construtiva
“é bom que a casa fica mais arrumada” sim
que mais que ela faz?
ela domina (não há outra palavra para) certo configuro de muros e telhas
e as cheíssimas sombras da vizinha bromélia
concordo –, isto não é vida
sente-se nos quadris a troca de estação
retiro o casaco de seus referentes
esta planta é de mau tom
minha família inteira resolve colocar as diferenças de lado e reunir-se num armazém do cais do porto
no intuito de me alertar para

A Juventude é Uma Invenção Fabulosa (Investigação Sobre Os Amigos do Meu Irmão)



("Dois retratos de Vinicius Cardinali", Araraquara, julho de 2014)

Não, Não


Não é boa vizinhança afirmá-lo

Todos estão brandos estas são as estações brandas

minha mãe um dos muitos pátios que urge varrer
ora sei que é preciso murar-se
o poema
deve-se sentá-lo pelas quatro estações de um ano terrível
o que nos diz o terminal quando para de ondear
do verão, procure ouvir
aqui está
quente morno temperado
aqui não há quase estações falando verdade
o homem ordinário é uma tara que muitos outros mundos são esses?
há um reparo amarelo aqui não há quase um clima
fora o indulto de licenças poéticas
aqui o tempo está esplêndido escreve-me
certa gente que não vejo há meses


*


Não é caso de se levantar


Eu não sei a diferença entre a coerência & a coerência &

a repetição caligem fósseis conterraneidade ruidosa 
no verso 
algo à maneira de uma tosse 
seca e não consigo dar
um décimo andar sobre nada cravado
de ventos frios 
onde sinto-me perder a variante decisiva
“minha vida” 
foi que abriram tanto
florão buquê parentético eu não sei 
quem sabe a coisa que o vento 
avulsa de mim assina 
um casario alegre & deitado 
por terra. Onde sinto-me perder até as latentes


*

Não há uma só palavra para junho

Como os hemisférios desvairam
entre si
não há uma só palavra para junho,
nem mesmo
julho, agosto, setembro, não há
isto que há, que escrevo agora,
uma bela manhã”,
isto que escrevo e numa língua
em que eu talvez não seja nascido,
oportunos azuis, amarelos, um poema 
a que não comparecem
testemunhas, uma luz 
que noite de tão 
longe. Este é o planeta – já estamos
consolados? –, ele se move
para criar um diferendo, outros 
rincões 
onde partir não significa
bem isto


sexta-feira, 11 de julho de 2014

Vida & Martírio


Relatou ao doutor
como vinha reescrevendo,
de uns tempos para cá, o impulso
de escrever. É como se
eu ouvisse um disparo longínquo
em algum lugar da vizinhança,
convém não investigar
a fundo. Cogita brevemente colocar
sua fogueira sobre a moça
sentada na poltrona
logo à frente, acontecia-nos
(a todos) de Groucho adentrar o saloon
e abancar-se ao lado
de um beberrão desmaiado,
perguntar: “Já não fomos apresentados
em Monte Carlo – na noite em que o senhor
estourou os miolos?” O alto da mudez
e petrosidade dela, isto o fez indagar-se
que viera fazer ali dentro
(ela ali, dentro no mundo. Reiteradamente)
nos falam o quanto
são inofensivas as pessoas
que entram em cinemas sem ligar
muita atenção ao que estão levando,
querendo apenas morrer
ou pôr ordem às ideias, o que,
pensando bem,
não seria a primeira mentira. Depois,
reentrado em seu direito, remói-se
por não tê-la apanhado de volta,
porquanto são três os tempos
do fogo: primeiro, o tornar
puro – ao segundo deita-se a ideia
de uma continuidade obreira, um,
por assim dizer, “trabalho” – sendo
o terceiro acarretador de cessações
as mais violentas,
buio omega a tudo abocanhando listas
de pendências, certificados
de vacinação. Ele disse: “não a lonjura e o desperdício
do símbolo, mas”

Furore


Esta é simples, encarnada, não como aquelas que se esgueiram por debaixo da mobília, entre os tacões do sofá, vozes tão esvaídas que sequer vão dar à janela.

É certo que tem andado um pouco desiludido, mas agora as palavras aderem à superfície, escrevem-se, ao passo que as investidas anteriores jamais resultaram em coisa parecida. 

Antes, um cão que ladrava dobradamente para um terreno devoluto. Havia vitrines. Os quintais em declive de velhas senhoras. 

E também o nosso próprio unívoco reflexo no cromo da chaleira. Tal & qual, os assassinos espalhavam-se pela relva baixa e febril, até onde a vista perde notícia. 

Vê-se que era uma noite como outra qualquer. Nada volta de um porão escuro para contestá-lo. A despeito de seus gritos, a casa ia sempre silenciosa.

Hoje ele grita com a certeza de que pode tornar habitada uma casa. Ele grita, meneia os quadris, pinta uma parede de vermelho. Não vivo mais, não amo mais ninguém.

*


Verão (Calistênicos)


Então 
temos dias como este – acorda, à falta 
de termo mais exato, procura acordar, consulta verbetes 
o verão
o verão põe guizos 
o verão um peso em torno 
a vida em seu costume mais chanchadesco
estes dias de todos os lados iluminados 

dá um passeio pelos arredores do terreno e vê, enroscada no arame farpado, uma sombra que reconhece imediatamente como a sua. Assente com a cabeça. Continua a caminhar.

Uma compacta nuvem de 
pendurado a um braço do salgueiro, o saiote enfunado da suicida pregressa
de volta ao jardim, Nicolau-aliás-O-Bode torna a assumir uma postura desfaçada, dissimula sua impaciência servindo-se de mais um copo de sangria.

Ele rabisca numa ficha pautada algumas opções: A Tortura da Vocação, A Vocação Torturante, Vocação e Tortura.

Assente com a cabeça. Continua a caminhar. De volta ao salão de livros, sufoca entre telegramas amáveis. As respostas, igualmente pródigas em bons votos, ele as pousa sem muito lapidá-las sobre uma salva de prata enferrujada. Em seguida – e há que lembrar-se dos guizos – depõe a salva no elevador da copa. Pressiona um botão vermelho; o elevador desce; em seguida, assoma vazio, esfaimado, reclamando sempre mais amabilidades, mais e mais bons votos.    

Ó criança amarfanhada, arrojada como um telegrama sobre a espreguiçadeira de vime
ó bode, traçado carmim no tronco do salgueiro

ó telegramas, ó visitas, ó boa gente que para sempre corre rumo às quadras de tênis

“esperem por mim!”

“Não tem por onde se lhe pegue”


Trabalho num edifício do governo
fronteiro há
um jardim do governo
onde aleias do governo

caramanchões do governo
sob os quais
namorados do governo
cantam o caput
do contrato remiram firmes
reivindicativas flores
onde
abelhas há
que rebentam
rebentam de apólices
duvidosas
onde há velhos onde
cerram-se
rijas enfermeiras do governo
para que não se tornem
das mesmas carpas
que as crianças
chutam
seixos cercas estacas
formigueiros há
onde
atiraram-se ofícios acesos
há polícias bom
não são mais do que os rigores
do lugar
dentre os quais
uma planície sustentada
por enferrujadas mãos
francesas
já não se conta nada
de propriamente meu tirante
umas duas trombas
d’água
(uma à entrada
outra pontualmente
mais adiante)
mais essa diabólica
inflamação
das bolsas sinoviais
até mesmo a bengala
tomei-a de empréstimo
a uma amiga
cuja mãe –
                 & agora
amparo-a contra
um coqueiro do governo
um pouco penso
à laje das coisas
rebusco os bolsos
onde os cigarros
onde o isqueiro
onde as migalhas
& minhas mãos (tremem
imperceptivelmente)
cogito de todos os homens
que morreram à procura
de sombra
não terás sido
Saturnino
(não são mais)
Saturnino
(do que os rigores)
Saturnino
(do lugar)
Saturnino
o mais
o mais
[...]
poupado?
                        quisera
pôr em tudo
que fiz uma cidade
uma ameaça
uma mal
-pronunciada oubliette
mas
minhas mãos tremem
imperceptivelmente
sobre o cilindro cinzeiro seguro
terei o aspecto de quem
acaba de perder uma vogal importantíssima
como “a” ou
o quanto antes
rezar um léxicon
na intenção destas senhoras de jaleco branco
sem comboio de colírio
ou lencinho alavandado
parecem extraviadas de longo jejum
tomam
distraidamente
por uma língua morta
& de dentro
               gritando
                            fogo
& de dentro
               gritando
                            fogo
(já não parece
que foi ontem)
fizemos soar
as alarmas de incêndio
nada disso companheiros
é culpa minha

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Os Hóspedes


Dois anos. Mas parecem dois anos.
Uma família, talvez – todos não-fumantes –
ignoram a insígnia, o serrilhado de dentes
sobre o braço da cadeira
alguém tomará assento. Começará uma história íngreme.

Tudo o que aconteceu foi um trator, 
... uma colheitadeira?”

Telefonam para o saguão. Desejam saber se as janelas só abrem aquele tanto.
O tipo da gente populosa, amável, demanda de muito ar.
Sobre a mesa já não há nada de terrivelmente aceso.
Fumaça, poeira, almofadas esventradas
avivam o espaço, dão a conhecer
as palavras eram – “quem é o protagonista?”.
Inamovível, atravessei a seção de luz, o papel amassado na mão direita.
Ao tentar empurrá-lo pela minúscula abertura da janela, vi subir a ladeira do hotel
um bêbado que enlaçava-se de poste em poste,
berrando... Em cada poste
detinha-se o traste, o bastante para retomar o fôlego
– o quarto não era feito de outra coisa –,
logo arremetia ao seguinte. Teria escapado (o dia seguinte),
não fosse por um enguiço fortuito na porta giratória.
E no dia seguinte, ao café da manhã, alguém se sentirá moderno,
i. e.,
perfeitamente capaz de deitar pelo Salão Topázio uns juízos continentais acerca da vida, de como se deve tocá-la.
(A vida é
A arte é
O amor é
O remorso é)
Uma história íngreme.
As camareiras refaziam, em silêncio, toda manhã.  
“Melhor abrir uma janela”, pensei, acendendo por descuido
o bêbado que abraçava os postes da ladeira
e, sob a minha janela, berrava – “quem é o protagonista?”
Então pude respirar. Vesti o pijama e fixei detidamente o papel de parede, sem compreender muito bem a estampa que se repetia.
Pensei nestes dois anos, sem tampouco compreender a estampa que se repetia.
Pensei – “ser livre, meu amor, livre, a última primavera do significado... !”.

Mudou-se-me o nome de um médico.
O cão, como disse, é recente.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

[Todas as histórias, mesmo aquelas que não vão muito além de seus próprios desvios,...]



Todas as histórias, mesmo aquelas que não vão muito além de seus próprios desvios, precisam ambientar-se em alguma parte. 
A questão que se põe – em que região do olho transcorre esta que se acaba de contar?
No branco? No azul?
Uma vez desligado o abajur,
o que é feito do homem forte que nos olhava diretamente ao umbigo?
Da amiga que, tendo que fechar o escritório às quintas-feiras, atravessa longos corredores desejando apenas não fazer nenhuma sombra?
De uns trens
quando havia dois nadas
de uns trens que o dividiam em dois
parentes remotos que viveram e morreram numa estação ferroviária azul


A questão que se põe –

O que fazer o que fazer das memórias de infância daqueles que não nos amam
Dos que não alcançamos amar
Senão as mesmas palavras de onde nos lançamos 
Todos os dias


repatriadas

terça-feira, 8 de julho de 2014

[Troca-se a consciência por um hábito preto, monacal,]


Troca-se a consciência por um hábito preto, monacal,
as ilhas de ranho e porra e troca-se
a consciência por um par
de olhos um bocado amanifestos voltam-se
para o rombo na porta do banheiro
por onde os bombeiros arrastaram-no sábado passado
                                           os olhos
                                           os olhos cortados cerce
ouve-lhe ainda a patrícia rosnadura
diante de uma planta aproximativa do shopping Eldorado & outro
que esbugalha-se à janela do quarto às duas da manhã
& outro que ergue o bisturi cansado do semimorto em que vem operando já faz horas
& vislumbra um outro emparelhar-se com Veneza a caminho do barbeiro
& ainda outro que afirma não ter perdido em absoluto o senso de humor ao entrar para o monastério

por fim, uma das ilhas que vêm figurando tão insistentemente em nossos últimos e-mails lança um braço de rocha pela gola
porque breve extrapolará o quarto a canção de amor do tecido desfeito,
porque se rompe um braço uma perna um outro acordo qualquer
& agora já somos tantos que somos
grilos,
corujas, hermafroditas, cracudos, chineses que escrutam o loteamento ao lado à procura de um terreno para a construção da nova sede do consulado, que somos
tantas criaturas de fábula,
tantos desgraçados a aguardar com perfeita paciência o momento da fábula,


Contrafeitiços


Algo que já amamos,
algo que de certeza já foi amado por nós,
começa a estreitar a casa pouco depois do anoitecer,
coloca seus ângulos em causa, pela janela da sala,
o quintal perde nomes, para revertê-lo
reviro a lata de biscoitos onde guardamos as peças de gamão,
tiro sons, operações simples
que me devolvam, ainda que escalpelado,
à língua materna, a esta hora em que tudo fraqueja, as janelas
não param de afundar, reviro
a lata de biscoitos onde estariam guardadas as peças de gamão
para perder os passos de certo homem alto
que uma tarde o convidou para o chá –,
à hora do chá, nesta hora
em que tudo parece fraquejar e a emissão de compassos ternários
torna-se questão de primeira importância,
confio a você, meu amor, esta hora,
esta hora de lata
e peças, a lata com as peças, o tabuleiro sobre a mesa, a mesa,
as cedências do terreno,
a você, ainda a meio do caminho, quem sabe palpando o molho de chaves
na metade da ladeira, pensa,
quem me atira essas coisas?, será sempre mais difícil subir?, talvez
talvez
se nos mudássemos, meu amor, os objetos
perdendo agouro, nenhum resquício de contrariedade, poderíamos então tocá-los,
de fato tocá-los, metê-los em caixas, poderíamos
fechá-los, lacrá-los, mandá-los embora, sem a menor consideração
por sua história íntima, você
não adoraria recomeçar? Não? Mas agora
abre a porta de casa e dá comigo
imóvel,
olhos cravados no tabuleiro, com gesto infinitamente amoroso
veste as costas da cadeira com o paletó, como suo frio censura
em silêncio meu otimismo.

Algo que já amamos –
algo que ainda amaremos –,
começa a estreitar a casa pouco depois do anoitecer.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Onde Cair Morta


Fui uma criança feliz, possuidora de suas solidões --, assim dizem os leks quando entram a pensar em voz alta sob os toldos dos bares. 

Agora, no entanto, e o senhor certamente convirá, minha situação é deplorável. Decresço talvez da espessura de um tule, um barbantinho deveras penitenciado, e todos concordarão já não sou a mesma tipa que… 

contudo 
onde os meios de aplacá-los? 

Dão-me a entender continuamente que o pouco que peço da vida não é absolutamente razoável. Dizem também que não sofro, que não há razão, que se não o admito é por volúpia e perversidade. Então, não sofro. Não sofro. Mas também não sei mais o que fazer. 

Passo os dias pateando com a barriga. Assim não se vai muito longe, mas insisto – não reconhecerei essa cidade. De resto, já fiz concessões demais. Há limites para tudo. 

Não bastou um só marinheiro. Houve um mar rebocado de branco, pensei, e fui abaixo. Quando voltei para a minha mesa, contava com certa ancestralidade que antes não tinha. Os da casa, naturalmente, não souberam como reagir. 

Toquei para o quarto me lustrar.

Há sempre graves consequências para portas e janelas, e o senhor meu pai certamente convirá, meu trabalho tem que ver em sua essência com descuido.

Eis a única concessão que não me disponho a fazer – não reconhecerei os seus parques, os seus cães, os seus espelhos – não os reconhecerei. O meu trabalho talvez não interesse a ninguém – é uma hipótese, aliás, bastante cabível –, mas eles... ora, eles...

temo que não se deixem aplacar nem mesmo pela minha ausência

Sei que breve darão por encerrada a minha estadia aqui – impossível prever que pretextos, que perjúrios, ocupo-me disso com todas as fibras do meu ser mas continuo sem compreender o que exatamente se espera de mim.

O que posso dizer é que a atmosfera torna-se cada dia mais rebarbativa. Dentro em breve encontrarão algum motivo para me desalojar; minhas economias acabaram; não tenho mais ninguém no mundo a quem recorrer. O senhor não me receberia em sua casa, talvez em junho, julho, o senhor não me faria a caridade de um cantinho para organizar os pensamentos?

penso que 

Prometo ajudar nas pequenas tarefas da casa, acompanhar os seus meninos até o colégio, se é que já não estão na universidade, os meninos. Eu não sei. Tentarei, tentarei me envolver, naturalmente, dentro dos limites que o senhor achar por bem colocar. 


Além do mais, parece-me que há muito postergamos um íntimo acerto de contas. 


Eis, portanto, uma bela oportunidade que o senhor me daria de conhecê-lo um pouco melhor, uma oportunidade talvez de trocarmos raízes, apesar de todos esses anos que passamos alheados um do outro.

Sou a primeira a reconhecer que fiz um casamento infeliz, que desperdicei os melhores anos de minha vida com empreitadas absurdas, irreais. Tenho presente o tanto de desgosto que dei àqueles que só queriam o meu bem, e que minha reputação neste Eixo não é das melhores. Não serei merecedora, contudo, de uma segunda chance? 

O senhor certamente convirá em que trilhou caminhos os mais tortuosos até encontrar a felicidade doméstica. 

Não serei merecedora, contudo, de uma segunda chance?
Mas o senhor me recusaria
Mas o senhor não me recusaria a caridade de um canto para passar o inverno.