domingo, 28 de setembro de 2014

O Setembro Seguinte



Precipitação de agulhas no cômodo ao lado.
A custo reúnem-se
o céu,
os bibelôs da cidade do Cairo,
uma gabardina estendida para secar, o cheiro a urina na manta
sobre o parapeito da janela – viver –,
circunvalado pela doença.
Cair, eventualmente,
com a tosse marretando, engulho, grossas passadas rumo ao banheiro às três da manhã.
Uma partilha difícil, em todo caso, indecente.
A morte
em tudo, um peso sanatorial –, arca, baú, banco de igreja –,
arca, baú, banco de igreja.
Tudo participa do meu tamanho. As consistências, porém, oscilam.
A tubulação caduca.
Todos sabem que a fiação não aguenta até o ano que vêm.
Todos sabem, tudo
virá abaixo, não será por falta de aviso,
será a coisa mais distante de um poema de que já se teve notícia.
Contra o verde nauseante da pia, amanhece a branca noite dos pulmões.

Um Mau Amigo das Viagens


Bom, nada mais absurdo que meu vulto rondando essas rodoviárias do interior do estado, acorcundado sob a mochila grande demais, pernas penduradas de altos bancos de concreto –, balançando, balançando... Mas isto à primeira vista.

Uma agradável sensação – afetação, como quiserem – de continuidades decorre de estar num lugar e, logo em seguida, noutro. Talvez se trate de uma cidade abandonada às pressas, feita para se abandonar às pressas, de improviso, com firmeza de decisão tão absurda quanto a mochila que agora lhe pesa sobre as costas; talvez se trate de uma cidade que – como insiste em dizer aos amigos que lá foram cavar a vida –, nunca lhe fez favor nenhum, muito pelo contrário

Quem sabe? Partidas bem mais improváveis despencam sobre todos, todos os dias, basta olhar em torno. A você, mau amigo das viagens, a quem o simples ato de se deslocar de um canto a outro de um saguão envidraçado parece, no mais das vezes, inteiramente impossível, outro destino não caberia.

E como se não bastasse, ao longo das estradas percorridas de noite espaçam-se lugares ainda menos definitivos. Como é difícil acreditar que cidades inteiras se abrem por detrás das paradas, dos banheiros das paradas, dos sucessivos espelhos em que meu rosto vai se embaçando –, estes banheiros onde invariavelmente se pensa – isto é possível, não eu, eu me movendo é inteiramente possível.

Cidades Cada Vez Menores (Num Estacionamento)


Nem aqui estaremos a salvo de reencontros –, no estacionamento vazio de um supermercado, de um restaurante, às nove e meia da noite de um dia de semana –, à cata de respostas, cabeça baixa, lugares bem pouco fenícios – corro os olhos pelas linhas brancas ou amarelas que delimitam as vagas – enquanto –, você pesa, segundo a segundo, minha lentidão, ou até menos – a mesma postura desafiadora de sempre, mais orgulhoso, talvez, embora seu rosto tenha mudado completamente, já naquela época o seu rosto parecia mudar completamente de tempos em tempos, parece que os anos não passaram, que os anos não passam, que um torniquete –, parece que os anos passam, parece que os anos entretanto não se deixam formular, o que é infinitamente mais angustiante –, porque é de fato angustiante procurar por respostas simples e cabíveis e encontrar apenas e sempre certo tempo, informulável – agora –, pareço divisar um objeto qualquer sobre o asfalto: enfoco, não é um objeto qualquer: trata-se de um tubo de lubrificante anal espremido até o talo, a poucos metros de nós, ele consome a pergunta –, perceba, em qualquer outra ocasião isso me divertiria até não mais –, em qualquer outra ocasião eu certamente me sentiria tentado a dizer alguma coisa como Cristo Pai, como eu amo essa cidade – isto me falaria, este detalhe, isto me diria então: “certo, rapazes, mãos à obra!” –, mas agora estou atordoado, parece-me que apostamos alto, aponto para o tubo e em tom de pura delação repito está vendo, está vendo?, e assim me ergo não sem algum atrapalho da pergunta que você acaba de fazer, apontando para o tubo espremido de lubrificante anal, dedo inquisidor, SECO, sentencio, impossível continuar vivendo num lugar assim, impossível viver em meio a tantas distrações, entendo agora o meu percurso, ele me parece mais claro do que nunca, será por cidades cada vez menores, cada vez menores, cidades de esquecimento, cidades negativas, cidades onde toda e qualquer possibilidade de reencontro será vetada já de saída, e consequentemente, eventos cada vez mais insignificantes, relações de natureza sempre mais frágil, sempre mais questionável, enormidade de coisas entre as quais perder o seu rosto outra vez, na área de fumantes, completamente mudado, a expressão de susto quando o fantasma aparece diante do malfeitor para o acerto de contas, iluminado por luz policialesca, girando vermelha e azul, vermelha e azul a pergunta pende –, mas você quer viver ou você quer morrer?”

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Bom dia, rapazes


I.

Após a longa semana de trabalho, qualquer coisa nos autoriza enfim a falar de amor –, rosa amiga dos homens por abrigar em si tantas outras valências, os dedos, de par com certas ideias sublimes, vinhetas de peixe, fritas –, isto , que antes deslizava! A coisa se debate, debate-se acerca da coisa. Quando começa a chiar nas bordas da frigideira, seus fumos preenchendo a cozinha do botequim, está completo, estará incompleto? Quando falamos de amor, como agora, de boca aturdida, dedos malcheirosos, de viagem dos longos trabalhos da semana, longe onde ninguém nos possa tocar, e que nos toquem –, que nos alcancem e toquem –, para tanto estendem-se estes mesmos dedos para trás e para frente, esboço que relembra e pregusta o toque, afinal, ter um gesto, um gesto que seja, neste ar que pesa a peixe e frito. O mesmo gesto que não abole o tempo, que se ilude infantilmente tanto de aboli-lo quanto de atrair a atenção do garçom, um mesmo gesto fragorosamente inútil gemina sonho e lembrança – talvez uma volta larga, executa-se assim com a mão, o indicador em riste –, o resto do corpo em cortejo, humilhado pela nobreza do gesto. Ter um gesto, não uma prevenção, ter um gesto inútil e nobre que a tudo comporte em suas voltas – e isto “nos tempos de agora”. Os pés cruzam-se com os pés da mesa, as coxas enrijecem de súbito –, beleza e sordidez da digestão, passeio , enfim, conhece-se o jogo – nunca é o nosso, o nome que fazemos pairar neste ar viciado, que assinamos sobre as travessas e copos vazios – mas esta volta, propriamente esta série de voltas que fazem os braços, pescoços, barbas, bocas que nos comoveram até então. Liquidados os longos trabalhos da semana, quaisquer que sejam eles, sentaremos num botequim e falaremos de amor perfeitamente cônscios da indesculpabilidade do ato –, como quem já fez o pudor, a confidência – como quem já viveu com alguma profundidade os rigores da amargura e agora e um bocado jovialmente espatifa monóculos contra o balcão. Espatifar os monóculos contra o balcão sem perguntar-se se isto é uma imagem duradoura. Ter um gesto bravo, inútil, nobre, inútil, belo – chamá-lo de amor.

II.


Mais tarde, pouco antes de dormir, revemos – de passagem – estes dedos que sobrevoavam oleosos os destroços da mesa. A imagem filtrará pela página que ora lemos, pelo livro com que nos fomos deitar, zelosamente apagaremos o último cigarro. Ao livro se juntarão então os jorros de nada das mãos sobre a mesa, os fumos desprendidos de determinados gestos – bocas, as barbas, imberbe insistência das barbas em falar de amor, tudo isso cederá lugar enfim ao sono – bloco de perfeita contenção. O sono é ele próprio inútil e nobre, empurra o livro da cama. O livro – previsivelmente, uma compilação de histórias de amor – cai sobre a mesa de cabeceira, entornando o copo de leite. Mas não acordamos, e se acordamos, já é manhã de sábado – a primeira coisa que vemos, afastados do rosto os dedos da noite anterior, é o copo virado, o livro encharcado de leite sobre a mesa de cabeceira. Onde está escrito, a que se refere uma cama vazia? Pondo de lado os cabelos, os dedos da noite anterior, podemos então ver a realidade das coisas – e isso, “parte-nos o coração”? As mãos, cada vez mais antigas, “partem-nos o coração”? As imagens, mais antigas com cada amor, a cega insistência das mãos sobre imagens cada vez mais antigas – “partem-nos ainda o coração”? Certos de que tudo recomeçará – infalivelmente o amor, o trabalho, os livros, nenhuma dimensão heroica –, temos uma breve hesitação antes de buscar o pano e limpar a mesa de cabeceira. Faz sol e não há vento. Colocamos o livro para secar sobre o parapeito.