domingo, 26 de abril de 2015

Numa Lanchonete em 2012

Penso no homem que inventou a meia-noite.
A escarpa extática de seu nariz ao inclinar-se.
O ato de inclinar-se.
Catalogar, representar no espírito, os salgados expostos na estufa,
a luz branca que os mantinha, como que à força, em seu lugar.
Das duas entradas de uma galeria em “U” efluía então
certa ideia de movimento humano, persistência muda,
síntese,
não era difusa?
Emblema do que viemos a entender como natural
(“o mundo natural”, “a ordem natural das coisas”).
Estas pessoas que saem, que entraram, sabe-se lá por onde,
ninguém dá por nós,
este comércio estreito na luz branca,
esta galeria,
a luz atravancada de galerias, estufas, refrigeradores,
eu repito: natural.
Eu repito: as coisas representam-se no mundo.
É da ordem natural das coisas não revermos aquelas pessoas.
Não as vimos.
Nenhuma delas, por sua vez, reparou em nós.
Nenhuma delas nos interpreta, nem mesmo agora,
como o sítio de uma grande devastação futura,
que é precisamente o que somos:
a cerca desigual,
o corrimão,
arames
embrulhando a fronteira.
O que me comunica novamente este momento?
O que me comunica então esta rua, esta vizinhança, esta cidade, não estou sempre a nascer?
Procurando exasperadamente acomodar
o ar, a luz,
a ruminação nestas bocas?
A fome? a banalidade dos saciados?
Também naquele momento,
condenado, como todos os outros, a vir abaixo,
havia já qualquer coisa que vinha abaixo,
um punhado de pedriscos
despencando no mar,
a luz branca a escapar dos freezers,
das estufas, das vitrines.
A luz branca já voltava à carga.
Nós levantamos. Nós pagamos a conta.


terça-feira, 21 de abril de 2015

"Divertimento", "Desastre (Outro Postal)"


Divertimento

Suponha então que seja este o meu último poema
(imagine, na carniça da idade) olho
para o seu rosto, não sei se se refere ao infinito,
que é isto quando
os olhos descrevem uma argola e depois outra,
quando manobra – mas por quê? – os óculos
na vertical,
não sei,
ignoro o número oito.
Suponha agora que sejam estas as minhas últimas palavras.
Não “Josefina” –, “mais luz!” –,
já faz muito tempo que não bebo champanhe”, mas
estas:
“Ignoro o número oito”.

(Neste exato momento um piano caminha lentamente para a Terra).

*

Desastre (Outro Postal)

Este o seu rosto comprido quando o outono entrava
colhia-se um cheiro a peixe
este o seu rosto a oscilar com os números oficiais
toneladas de peixes carregados em caminhões de noite
                                                       aos outeiros da periferia

este o seu rosto estampando-se asfáltica água
montanhas trançadas
aquilo que não ejaculava, transparente?

domingo, 5 de abril de 2015

Idéia da Morte na Cinelândia (Primeira Versão)



Ó morrer como Jó, velho e “farto de dias”, todas as úlceras canceladas, duplicados os não sei quantos jumentos –,

pensa miudinho ao chegar à Cinelândia, o espaço batendo-lhe em cheio, devolvendo-lhe

umas ideias que não tivera tempo de aprofundar à hora do almoço,

é o que acontece a qualquer um que vem dar porventura à Cinelândia, seja por que lado for, é o espaço,

(o que acontece)

(o espaço para a morte dependurada)

esta irrupção – sempre imprevista – que vem testar o perímetro do fôlego,

que nos arranca em definitivo às celas bolorentas onde silenciosa e cotidianamente vamos perdendo a razão,

que é o último arranque,

(testar o perímetro do fôlego)

O que acontece a qualquer um que vem dar porventura à Cinelândia, jorro de espaço para aprofundar umas ideias de “boa morte”,

muito espaço, muita ocasião

para quem vinha já esboçando de ocupar-se do assunto desde a hora do almoço

e não pudera prosseguir,

esperavam-no

em seus próprios dissensos, suas próprias miúdas predileções, era tudo um bocado miúdo e um bocado cômico, era chamado já e sem demora para uma certa maneira plenamente identificável de fazer girar a cadeira sobre o vácuo carpete da sala, altear o peito, exprimir-se acerca de qualquer banalidade –,

em muito pouco tempo nos erguemos, pouco mais de um mês e já está lá do outro lado um reflexo, (um reflexo não se mata a pauladas),

não uma inquietação acerca da “boa morte”, a morte com que é recompensado Jó após longa provação, afinal

há gente que não mexe nessas coisas e passa muito bem

e eu entre elas e em nós, em meio a nós passam fieiras de pesadíssimas fardas

mas antes saber o que é “provação”, esboçar uma ideia de “provação”, não deixá-la dependurada assim, sobre a mesa do refeitório

trabalhou duro o dia inteiro para merecer enfim a gravidade destas palavras:

reconquistar a morte de Deus

morrer

morrer sob essa morte

livres

ao ter a visão da Cinelândia, livrar-se dela para depois adentrá-la,

eu entre elas e em meio a nós as fardas pisam as cruzes

pisam esta aberta hoje atada de luzes policialescas, e como, como reconquistaremos a morte de Deus?



(Páscoa, 2015)